Aristides Sousa Mendes
e os refugiados da II Guerra Mundial
A partir do final da década de trinta e sobretudo
a partir do início da guerra, a principal preocupação
dos refugiados era arranjar um visto de trânsito português,
que podia representar a vida em vez da morte anunciada. Até
chegarem a Portugal, os fugidos à guerra e ao nazismo
necessitavam de um visto de saída da Alemanha ou dos
países ocupados, de um visto de trânsito espanhol
e de outro português do qual dependia a concessão
dos anteriores. Este só era, por seu turno, dado em
função da prévia obtenção
de um visto de entrada num país de destino e de uma
passagem num navio.
Como noutros países europeus, a política portuguesa
de fronteiras tornou-se tanto mais restritiva quanto maior
era o afluxo de refugiados. Com o início da guerra
civil em Espanha, em 1936, o governo passou a recusar a entrada
em Portugal aos espanhóis «vermelhos» e
aos russos e a atribuir unicamente vistos de turismo por trinta
dias a apátridas e a polacos. A partir de 1938, o recrudescimento
das medidas anti-semitas e a «Noite de Cristal»
na Alemanha e impeliram a sair do país muitos judeus
alemães, aos quais se juntariam, ainda nesse ano, judeus
austríacos, checos e italianos, depois da «anexação»
da Áustria, da invasão dos Sudetas e da introdução
das leis anti-semitas em Itália.
O próprio governo nazi incentivou, até Outubro
de 1941, a saída dos que considerava estarem fora da
«comunidade nacional», obrigando os judeus a um
«imposto de fuga» e a deixar os seus bens na Alemanha/
e atribuindo-lhes passaportes «especiais», que
faziam deles «emigrantes» aos quais seria doravante
impedido o retorno ao país de origem.
Após a conferência de Evian, convocada em Junho
de 1938 para gerir a inundação de «emigrantes»
na Europa, começaram a ser introduzidas nas legislações
de muitos países europeus limitações
à entrada de judeus alemães, austríacos,
italianos e polacos. Inspirando-se nessa lei, o MNE português
emitiu, em 28 de Outubro de 1938, a circular 10 que obrigava
a partir de então os «imigrantes judeus»
a requerer um visto de «turismo» de trinta dias
para entrar em Portugal.
Essa norma abrangia assim pela primeira vez um vasto grupo
específico de candidatos à entrada no país
que se tornara visível a partir do momento em que a
Alemanha passou a carimbar a letra «J» nos passaportes
dos judeus, precisamente os «emigrantes» impedidos
de voltar ao seu país. Era a palavra «emigrante»
e não a palavra «judeu», que provavelmente
assustava as autoridades portuguesas, mas, embora se possa
dizer que a atitude do governo português não
provinha de sentimentos anti-judaicos, o certo é que
a política de fronteiras portuguesa foi, nesse período,
objectivamente anti-semita.
Em Novembro de 1939, o Ministério emitiu a circular
14, que autorizava só aos diplomatas de carreira a
concessão de vistos e que os obrigava a consultar a
PVDE e o MNE antes de visarem os passaportes de apátridas
e russos, dos judeus expulsos dos seus países e de
pessoas sem visto dos países de destino e sem garantia
de embarque para sair de Portugal.
Os protestos contra os poderes crescentes da PVDE e os atropelamentos
por parte desta das funções consulares não
deixaram de se fazer ouvir, embora o MNE, à frente
do qual estava o próprio Salazar, tenha seguido cada
vez mais a atitude de endurecimento da polícia, virando-se
frequentemente contra os diplomatas. Alguns dos representantes
de Portugal nos países ocupados e do Eixo, em contacto
com as misérias das vítimas do nazismo, intercederam
em seu favor, desobedecendo, por vezes, às ordens do
MNE e da PVDE.
Alguns exemplos.
Embora alertasse o Ministério dos Negócios Estrangeiros
para o perigo de uma emigração maciça
para Portugal de judeus alemães e fosse adepto da política
da vistos, o ministro de Portugal em Berlim, Veiga Simões,
criticou a postura da PVDE que pretendia impedir a entrada
a todos os refugiados, por infringir os cit «deveres
de solidariedade e de humanidade» cit. Sugeriu, assim,
que, pelo menos, fossem concedidos vistos a todos os que possuíssem
meios de subsistência e revelassem «idoneidade
moral» assim como «alta categoria científica
e técnica».
Em 9 de Janeiro de 1940, o impedimento de desembarque em
Portugal de judeus alemães residentes na Holanda motivou
um protesto do cônsul-geral de Rotterdam, José
Lima Santos, que lamentou a diferença de critérios
entre a polícia e os consulados. Em Abril de 1940,
o MNE avisou a Legação em Roma que não
reconhecia os vistos concedidos pelo cônsul honorário
em Milão, Agenor Magno, depois de a PVDE os ter recusado.
Diga-se que este cônsul seria depois exonerado das suas
funções.
Aristides de Sousa Mendes
No mesmo mês de Abril, o MNE repreeendeu o cônsul
em Bordéus, Aristides de Sousa Mendes, por também
ter concedido em 21 de Novembro de 1939 e em 1 de Março
de 1940 , vistos, recusados pelo MNE, respectivamente,
a um casal judeu e a um republicano espanhol. A partir de
então, milhares de refugiados dinamarqueses, noruegueses,
holandeses, belgas e luxemburgueses, fugidos à guerra
depois da invasão dos seus países pela Alemanha,
chegaram à cidade de Bordéus, onde tentaram
arranjar vistos para atravessar a fronteira dos Pirenéus.
Em 27 de Maio, o cônsul português visou os passaportes
de cerca de 17 belgas, já depois de os consulados portugueses
estarem impedidos de conceder vistos sem autorização
prévia do MNE.
Em 14 de Junho de 1940, no próprio dia da ocupação
de Paris pelos alemães, o Ministério emitiu
uma nova directiva (circular 23), segundo a qual os vistos
de trânsito por trinta dias só podiam, a partir
de então, ser concedidos aos refugiados na posse de
bilhetes de passagem para fora de Portugal e de um visto de
entrada num país de destino. Ora, entre 14 e 17 de
Junho, juntaram-se em Bordéus cerca de 700.000 fugitivos,
entre os quais governantes franceses e dos restantes países
anteriormente ocupados pelos alemães, que obviamente
não estavam nessas condições.
Aristides de Sousa Mendes decidiu então que daria
vistos a todos os que o solicitassem. Segundo ele, era imoral
e anticonstitucional perguntar aos requerentes de vistos se
eram judeus, pois segundo a Constituição portuguesa
de 1933, «em nenhuma circunstância a religião
ou as convicções políticas de um estrangeiro
o (impediriam) de procurar refugio no território português».
Argumentou ainda que tinha chegado a hora, para os portugueses,
de corrigirem a tragédia provocada pelo édito
de expulsão dos judeus (1497), ajudando-os, quinhentos
anos depois, quando voltavam a ser perseguidos. Finalmente,
reconheceu que corria o risco de vir a ser destituído
do seu cargo por desobedecer a ordens que, em seu entender,
cit «eram vis e injustas» cit.
Entre 17 e 19 de Junho, passou, assim, gratuitamente, milhares
de vistos e impeliu a fazer o mesmo o vice-cônsul honorário
em Toulouse, Émile Gissot, e ao cônsul e vice-cônsul
em Bayonne, respectivamente Faria Machado e Vieira Braga,
que não eram diplomatas de carreira. Nesta última
cidade, encontrava-se ainda o ministro plenipotenciário
português em Bruxelas, Francisco Calheiros de Meneses,
que também concedeu vistos aos refugiados. Não
vou entrar aqui em números: uns dizem que Aristides
teria dado 30.000 vistos, mas ainda hoje é difícil
fazer essa contabilização, pois, a partir do
fecho do consulado em Bayonne, em 24 de Junho, consul continuou
a assinar na fronteira de Hendaye em tudo o que era papeis,
mesmo a quem já nem um passaporte possuía.
Informado do que se passava, Salazar enviou então
o embaixador português em Madrid, Pedro Teotónio
Pereira à fronteira franco-espanhola de Irun, onde
as autoridades espanholas lhe disseram que Portugal estava
a cometer uma «imprudência» se a torrente
de refugiados continuasse e que a Espanha se veria obrigada
a não reconhecer os vistos portugueses. Cumprindo as
ordens de Salazar, Teotónio Pereira declarou então
a nulidade dos vistos concedidos pelo consulado em Bordéus,
o que levou à permanência de muitos refugiados
em solo francês.
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