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Refugiados

Lisboa e Estoril, centros de espionagem
Um dos campos em que a neutralidade portuguesa teve um carácter "equidistante” até quase ao final da guerra foi o da espionagem. Uma imigrante alemã que chegou a Portugal em 1936 recorda que muitos agentes secretos se encontravam no bar do Hotel Tivoli, em Lisboa, considerado pelos ingleses como sendo a favor do Eixo, juntamente com os hotéis Vitória, Suiço , Duas Nações , gerido por um alemão, e Avenida Palace. Consta, aliás, que um corredor ligava directamente o cais dos comboios da estação do Rossio, fronteira ao hotel, com um andar superior do hotel para possibilitar a chegada incógnita e sem controlo policial de personalidades importantes e espiões.

Pelo contrário, o Hotel Metrópole era considerado pró-britânico assim como o parece ter sido o luxuoso hotel Aviz. Muitos dos espiões, que se escondiam sob a capa de adidos diplomáticos, também se instalaram na estância turística do Estoril. Os alemães terão escolhido o Hotel Atlântico onde esteve hospedado Saint-Exupéry em 1940, no mesmo ano em que Heinrich Mann e Franz Werfel se instalavam no Grande Hotel da Itália. Este, assim como o Grande Hotel do Monte Estoril e o Palácio Hotel, era o preferido dos ingleses.

Aliadofilia e germanofilia
Mas, durante todo o período da guerra, um dos aspectos que terá marcado os estrangeiros foi, sem dúvida, a simpatia da maioria dos portugueses pelos aliados. A partir de 1940, nas rua, os "placards” das agências noticiosas começaram a ser alvo da curiosidade dos populares que tomavam partido em acesas discussões. Nas lojas, eram afixados cartazes de propaganda dos dois campos beligerantes, os vendedores ambulantes distribuíam quadras com letras aliadófilas, nas lapelas começaram a ser exibidas "cruzes de lorena” da França livre, emblemas da RAF inglesa e símbolos com o V da vitória, distribuídos pelos belgas. A partir de 1941, a PVDE começou a tomar medidas repressivas mas nunca conseguiu evitar as manifestações populares que só se tornaram mais subtis e indirectas.

A imprensa foi um dos palcos do esforço de propaganda dos dois campos beligerantes. Em 1940, Eugen Tillinger referia no jornal de exílio "Aufbau” que Portugal seguia uma rígida neutralidade bem visível nos quiosques onde, ao lado de dez jornais pro-Eixo, pendiam dez jornais pro-Aliados. Alfred Döblin mencionou igualmente que, no mesmo ano, se podia comprar em Lisboa os jornais "France-Soir” pro-Vichy e o "France” gaullista. A Alemanha e a Inglaterra passaram também a subsidiar revistas em língua portuguesa e os próprios jornais portugueses acabaram por tomar partido, apesar de censurados para não quebrarem a neutralidade e de criticados por desleixarem o noticiário nacional em favor das notícias sobre a guerra. Uma opinião que não foi partilhada pela jornalista francesa Suzanne Chantal que, em 1940, se queixou, pelo contrário, de que o noticiário internacional era completamente abafado pelas notícias sobre os feitos do Estado Novo e a "Exposição do Mundo Português”.

Miséria e opressão política
Hospitalidade, generosidade, aliadofilia e ausência de sentimentos anti-semitas foram as principais qualidades sempre enaltecidas pelos refugiados, sobretudo pelos que chegaram a Portugal durante o período da guerra. No entanto, apesar de concordarem com essas opiniões, outros também se aperceberam da miséria e opressão em que vivia a maioria dos portugueses e acrescentaram alguns aspectos negativos a essa imagem idílica. Atraso, pobreza, analfabetismo, ignorância, preconceitos, opressão das mulheres e profundas desigualdades numa sociedade fechada são alguns dos defeitos apontados pelos que chegaram ao país antes do endurecimento da política restritiva de entradas e que, por isso, aí permaneceram.

Associando o seu espírito crítico a um profundo conhecimento da sociedade portuguesa, Ilse Losa não mostrou contemplações com o meio pobre e atrasado da cidade do Porto onde a mulher não tinha direitos de cidadania e existia um enorme fosso entre ricos e miseráveis. Uma das suas personagens ficcionais, o judeu alemão José Berger, resume os sentimentos de claustrofobia e de revolta de um estrangeiro, já inserido mas sempre desenraizado, perante a ditadura que mantinha os portugueses na miséria e a atitude servil e passiva destes:
"Acontece quando as fronteiras deste pequeno país me tocam no corpo e experimento a sensação de estar preso num cárcere feito de princípios e de conceitos mesquinhos, de injustiças grosseiras, de sonolenta insipidez. Acontece quando me faltam a compreensão pelos miseráveis que, numa atitude de resignação indigna, me estendem o seu sorriso servil ou a mão para uma esmola, acontece quando a vida em público, decorrendo sem a presença de mulheres, me simboliza atraso, enfado, falta de espírito e de graça, e apetece-me então romper com as grades, respirar mais fundo, em qualquer parte onde haja resistência e luta, renovação e aventura, ou pelo menos um pouco mais de exuberância.” .

Compreensivelmente, no entanto, a realidade portuguesa permaneceu escondida à maioria dos refugiados que, nos anos quarenta, gratos com o primeiro abrigo encontrado ou/e ensimesmados na sua própria dor, se abstiveram, voluntária ou involuntariamente, de a vislumbrar. Eva Lewinski, uma das intelectuais alemãs salva em Marseille pelo Emergency Rescue Committee através de um "emergency visa” americano, sentiu o mesmo alívio da maioria dos refugiados quando chegou a Lisboa em Outubro de 1940. Passear livremente nas ruas iluminadas sem medo da polícia, sentar-se nos cafés, entrar nas lojas cheias e comprar livros e jornais em todas as línguas eram parcelas de uma liberdade que só reencontrou em Portugal.

Mas, ao contrário das imagens que ainda perduram na memória da maioria dos seus companheiros de infortúnio, também sentiu constrangimento e revolta perante a miséria alheia, quando viu, ao lado da zona rica da cidade, o bairro de Alfama onde a miséria e a sujidade eram indescritíveis. Jurando jamais esquecer o que tinha visto, interrogou-se como podiam ali nascer crianças "cobertas de vermes”, com "pernas onde não se via um pouco de carne, embrulhados em farrapos que mal protegiam do calor e do frio” e como podiam ali envelhecer os adultos "em buracos escuros onde mal a luz entrava, com chagas abertas” .
No mesmo mês da chegada de Eva Lewinski, partia de Lisboa, no navio "Nea Hellas”, Alfred Döblin que afirmou, sobre a sua estadia na capital portuguesa: "So selbstverständlich nahm uns Lissabon auf, so prächtig enttäuschte uns Lissabon” . Também ele, ao admirar a luminosidade paradisíaca da cidade, não deixou de referir, com ironia, que, na Praça Marquês de Pombal, a estátua de um tirano iluminista vigiava uma avenida chamada "Liberdade”. Entre as desilusões sentidas, descreveu o terrível hábito português de cuspir para o chão:
"Lissabon kennt die furchtbares Art der Spucken. Das anatomische Spucken. (...) Und was bedeutet dieses Spucken? (...) Wir mussen zu einer Erklärung greifen. Sie heisst: der Larm. Das Spucken gehört mit dem Larm zusammen. Weil man nicht immmerfort schreien kann und nicht jeder über einer Kuhlglocke verfugt, so spuckt man und zeigt wenigstens so seinen guten Willen.”

Além do calor e da luminosidade, o barulho parece ter sido a principal recordação sensual que perdurou de Lisboa na memória do autor de «Berlin, Alexanderplatz» . Nas ruas, as buzinadelas dos automóveis, os cantos dolentes dos cegos e os pregões dos vendedores ambulantes misturaram-se com o ruído dos carros eléctricos onde se amontoavam, descalças e andrajosas, crianças que, aos gritos, apregoavam jornais: "Während der Fahrt hüpfen Strassenjungen auf die Wagen, nacktfüssig, in zerrissenen Jacken und Hosen, Zeitungsverkäufer. An einem Hügel kann man das originelle Denkmal eines solchen Jungen sehen. Sie verdienen ein Denkmall - vielleicht könnte man ihnen eines Tages auch Jacken und Hosen Kaufen.”

Etupefacção com a visão de "crianças, nuas da cintura para baixo, de olhos encovados, estendendo a mão para a esmola” e de uma mulher descalça que se apressou a carregar-lhe a bagagem foi, à chegada a Portugal, o primeiro sentimento de José Berger, no romance «Sob Céus Estranhos» de Ilse Losa. Na mesma obra, também transparece o choque sentido por estrangeiros perante os "escarros no chão”, a "miudagem a esmolar” e as duas figuras típicas que constituíam a criada e o engraxador num país "onde a maioria das pessoas não têm para comer”.

Onde o homem domina a rua e "o hábito faz o monge”.
Os refugiados pouco mais viram da capital portuguesa que o perímetro espacial constituído pela baixa de Lisboa e pela Avenida da Liberdade, e quase só se relacionaram, superficialmente, com os portugueses nas ruas. Naquela época de ociosidade forçada, só largavam as pensões e os cafés "Coimbra” e "Paraíso”, da Rua Alexandre Herculano, para se incorporarem na "via sacra” das filas à porta da estação dos Correios, na Praça do Comércio, das companhias de navegação, da sede da American Export Lines, na rua Augusta, da Comassis, na rua do Monte Olivete, e dos consulados britânico e americano, na Rua da Emenda e na Avenida da Liberdade.

Esta avenida, o principal eixo de deslocação onde se sentavam nas pastelarias "Veneza” e "Palladium”, desembocava na praça central de Lisboa com os seus cafés "Nicola”, "Chave de Ouro”, "Gelo” e a pastelaria "Suíça”, que nessa época abriu uma esplanada para a rua. No Rossio, os homens, depois dos empregos nas múltiplas repartições públicas, juntavam-se e discutiam, em excepcionais pequenos ajuntamentos proibidos e vigiados atentamente pela Polícia, as últimas notícias da guerra lidas nos "placards” das agências dos jornais. No centro lisboeta, o homem dominava o espaço público e "o hábito fazia o monge” no seio de uma sociedade onde se tornava imediatamente visível a classe social a que todos, e especialmente as mulheres, pertenciam.

Descalças andavam as varinas descritas por Döblin, que transportavam o peixe cujo odor impregnava Lisboa, e as inúmeras vendedeiras ambulantes que, dos subúrbios urbanos, traziam de madrugada a fruta e os legumes para a Praça da Figueira. O caminho para o mercado e a mercearia era o quase único espaço público reservado à maioria das mulheres. As donas de casa pobres saíam de xaile pelos ombros e lenço na cabeça, sinais provincianos da sua recente emigração para a cidade. As mulheres da pequena burguesia largavam por breves momentos o roupão com que se vestiam em casa para poupar a roupa que levavam quando iam às compras nos "Grandes Armazéns”.

As senhoras da "alta sociedade” eram vistas, pela tarde, sempre vestidas de escuro, de chapéu, luvas, meias e braços cobertos em pleno verão, junto à montras da loja cosmopolita "Paris em Lisboa”, à saída da missa ou nas pastelarias a tomar chá e torradas. O quadro feminino completava-se com as criadas fardadas, uma instituição portuguesa existente em todos as casas, da pequena à grande-burguesia. Suzanne Chantal descreveu essas mulheres, quase sempre ex-rurais que na infância tinham ido "servir” para as casas citadinas, sempre a trabalhar, sem vida própria e a penar na maior solidão. Por seu turno, Ilse Losa pintou-as como seres oprimidos pelas "patroas”, por seu turno subjugadas aos maridos: "Elvira! A sopa! Elvira (...) parecia ter-se evadido dum conto de Tchekhov: magrinha e pálida, com um apertado carrapito no alto da cabeça e olheiras por baixo dos olhos singularmente precoces. (...) `Elvira! Elvira!´ chamavam de manhã à noite. Creio que se vingavam em Elvira da monótona vida que levavam devido ao despotismo do (marido)”.

A partir do Verão de 1943, quando o racionamento foi instituído, as infindáveis filas para a obtenção de senhas passaram a ser um outro espaço de socialização das mulheres. Nesses ajuntamentos que a Polícia não podia proibir, a submissão vislumbrada por Ilse Losa estava-se lentamente a transformar em aberto descontentamento e, nos bairros populares, quando rebentaram greves e protestos populares contra o custo de vida, muitas mulheres com os filhos no regaço juntaram-se às "marchas da fome”.

Esplanadas praias e mulheres. Novos hábitos.
A ociosidade forçada atirou a vaga concentrada dos refugiados para os espaços públicos onde a sua presença introduziu novos hábitos. As esplanadas e a atitude mais liberta das refugiadas que nelas se sentavam, parecem ter sido os fenómenos que mais marcaram os portugueses, no período da guerra. O escritor português Alves Redol descreveu a novidade: "Foi, então, aí por 1939, que do outro lado da praça e a pedido dos estrangeiros sem sol para os aquecer na vida se puseram mesas nos passeios (...) O gerente acedera, contrafeito, com receio de perder uma clientela que desconhecia os preços e não regateava. E as estrangeiras sentaram-se por ali a ler e a conversar”.

Também o escritor Alexandre Babo recordou as "esplanadas da Avenida ou do Rossio” onde se viam "franceses, belgas, holandeses, judeus dos mais remotos lugares” e nomeadamente a pastelaria que mais permaneceu no imaginário português: "À «Suíça», no Rossio, já chamavam o `Bompernasse, ali onde predominavam as mulheres (...) fumando em público. (...) Tudo isto era murro na boca do estômago do provincianismo nacional. (...) Aquela gente aparentava outros hábitos, mais livres, mais naturais e abertos (...) sem olharem (elas) de soslaio os machos, sentadas nos cafés, nas cervejarias, nos passeios públicos, o que até então era apanágio exclusivo dos homens e de algumas poucas mulheres.”

Em 1940, Suzanne Chantal escreveu, no jornal «Diário de Notícias», que "nunca tinha visto tantos homens juntos ao mesmo tempo numa praça pública e nem uma única mulher” e que compreendia a "razão por que Portugal tem um nome masculino”. No seu romance «Deus não Dorme», referiu o escândalo que os hábitos das estrangeiras provocavam entre algumas portuguesas que, por vezes, mostravam incompreensão pela situação dos refugiados: "Querem que a gente tenha pena deles. Passam ali os dias inteiros sem fazer nada. Estas estrangeiras! (...) Passeiam-se sem meias, sem chapéu. Trazem bâton nos lábios e não têm camisa. Uma vergonha! Um mau exemplo para as nossas filhas.”

Mas, a par do escândalo, começou a surgir entre as portuguesas uma atracção pelos novos hábitos. As estrangeiras influenciaram a moda com a introdução do turbante, do penteado curto, das "soquettes”, dos sapatos com cunha de cortiça e dos vestidos curtos. Seguindo o seu exemplo, muitas jovens portuguesas começaram também a sentar-se em cafés, a frequentar sozinhas o cinema e a sair à rua sem meias, luvas e chapéu. Prefigurando os novos hábitos que inexoravelmente seriam adoptados, Ilse Losa descreve o início das mudanças:
"O desembaraço com que se moviam e agiam (...) encontravam, para horror dos habitantes mais velhos, uma série de imitadores na gente nova. Começavam a ver-se raparigas de famílias bem instaladas em simulado `négligé´ de penteado `à refugiada´, a fumar cigarros na confeitaria, a discutir com gestos largos. Rapazes que até então só saíam à rua com raparigas da sua roda (...) mostravam-se por toda aparte com as `valdevinas´. Essa gente estranha, espalhada pelas praias, a levar uma vida de nómada (...) destoava do ambiente e criava uma atmosfera de instabilidade, incerteza e angústia” .

A partir do Verão de 1940, as praias também começaram a ser invadidas pelos refugiados. Em 11 de Setembro, o «Diário de Notícias» assinalava a nova moda dos fatos de banho claros trazida pelas estrangeiras às praias da Figueira da Foz, da Costa da Caparica e do Estoril. Embora sem mencionar directamente os refugiados, o artigo regozijava-se por Portugal se ter tornado "a praia mais ocidental da Europa onde se falam agora todas as línguas e se encontram mulheres de todos os tipos de beleza”.

Em 13 de Outubro de 1941, era outra a notícia do jornal «Século» que anunciava o regulamento dos fatos de banho recentemente instituído pelo Ministério do Interior. A presença dos refugiados foi, assim, a causa da introdução de novas leis de policiamento de costumes e, nomeadamente, da adopção de normas sobre o uso dos fatos de banho que deviam obrigatoriamente incluir o saiote para as mulheres e uma camisa que cobria o tronco para os homens . Uma das personagens criadas por Suzanne Chantal, descreveu o ridículo da situação ao lamentar que, em breve, a polícia iria "obrigar a tomar banho com calças, ligas e saias como em 1900” .

Ao fazer o balanço da presença dos refugiados em Portugal durante a II. Guerra Mundial, Alexandre Babo concluiu porém que os estrangeiros "alteraram a nossa vida, os nossos hábitos” e que se podia falar de "antes ou depois dos refugiados para indicar um padrão de vida.”

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