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Aristides de Sousa Mendes

A partir de Abril de 1940, milhares de refugiados dinamarqueses, noruegueses, holandeses, belgas e luxemburgueses, fugidos à guerra depois da invasão dos seus países pela Alemanha chegaram à cidade de Bordéus, de onde procuraram meios e vistos para atravessar a fronteira dos Pirenéus. Logo em 27 de Maio, o cônsul português deu vistos a cerca de 17 belgas, já depois de os consulados portugueses estarem impedidos, segundo uma norma de 17 de Maio de conceder vistos sem autorização prévia do MNE. Em 14 de Junho, no próprio dia da ocupação de Paris pelos alemães, os diplomatas receberam uma nova directiva (circular 23), segundo a qual os vistos de trânsito por trinta dias só podiam, a partir de então, ser concedidos aos refugiados com bilhetes de passagem, tempo planeado de estadia em Portugal e com um visto de entrada num país de destino.

Entre 14 e 17 de Junho, juntaram-se em Bordéus cerca de 700.000 fugitivos, entre os quais governantes franceses e dos restantes países anteriormente ocupados pelos alemães assim como representantes diplomáticos de 60 países. Aristides de Sousa Mendes decidiu então que daria vistos a todos os que o solicitassem sem praticar discriminações de carácter religioso, político ou «rácico». Considerava imoral e anticonstitucional perguntar aos requerentes de vistos se eram judeus, pois segundo a Constituição portuguesa de 1933, «em nenhuma circunstancia a religião ou as convicções políticas de um estrangeiro o (impediriam) de procurar refugio no território português» . Argumentou ainda que tinha chegado a hora, para os portugueses, de corrigirem a tragédia provocada pelo édito de expulsão dos judeus (1497), ajudando estes, quatrocentos anos depois, quando voltavam a ser perseguidos. Finalmente, considerou que os seus filhos o compreenderiam se por dar vistos a todos os refugiados viesse a ser destituído do seu cargo por ter agido contra ordens que, em seu entender, «eram vis e injustas».

Assim, nos três dias entre 17 e 19 de Junho, passou gratuitamente milhares de vistos e autorizou a concessão de vistos ao vice-cônsul honorário em Toulouse, Émilie Gissot, e ao cônsul e vice-cônsul em Bayonne, respectivamente Faria Machado e Vieira Braga, impedidos de visar passaportes por não serem diplomatas de carreira. Nesta última cidade, encontrava-se ainda o ministro plenipotenciário português em Bruxelas, Francisco Calheiros de Meneses, que também concedeu vistos aos refugiados. Informado do que se passava, Salazar enviou então o embaixador português em Madrid, Pedro Teotónio Pereira, para resolver a situação na fronteira franco-espanhola de Irun onde chegou a 22 de Junho.

As autoridades espanholas disseram-lhe que Portugal estava a cometer uma «imprudência» se a torrente de refugiados continuasse e que a Espanha se veria obrigada a não reconhecer os vistos portugueses, a maioria dos quais tinha a assinatura de Sousa Mendes. Perante o protesto de Teotónio Pereira, o comandante militar da fronteira espanhola avisou então de que não se queixasse depois se os alemães fossem até Portugal «atrás dos refugiados». O embaixador português em Madrid ordenou o cumprimento das ordens de Salazar e comunicou às autoridades espanholas a nulidade dos vistos concedidos pelo consulado em Bordéus.

Refugiados em Portugal
Em 24 de Junho, a Espanha deixou de reconhecer os vistos portugueses e o consulado de Bayonne foi fechado, mas Aristides de Sousa Mendes continuou a ajudar refugiados, assinando centenas vistos nas ruas de Hendaye. Nesse mesmo dia, a fronteira portuguesa de Vilar Formoso foi encerrada, tendo-se aí amontoado até ao dia 26 de junho cerca de 18.000 refugiados , muitos com visto dados pelo cônsul em Bordéus. Perante a recusa das autoridades espanholas em receber os refugiados de volta, com o argumento de que os vistos deviam ser respeitados, o director da PVDE, Agostinho Lourenço, teve de mandar reabrir a fronteira e tentou que a vaga de estrangeiros não se dirigisse a Lisboa, desviando muitos deles para zonas balneárias e termais onde havia hotéis e pensões.

Foi assim que, enquanto alguns refugiados começaram por ficar na Guarda, Viseu e Celorico da Beira, ou foram depois enviados para o Porto, Coimbra e Braga, a maioria foi directamente colocada em locais turístico, como a Costa da Caparica, Estoril, Cascais, Sintra, Caldas da Rainha, Buçaco, Curia, Foz do Arelho e a Figueira da Foz. Ao ser enviado para estância balnear, Eugen Tillinger temeu inicialmente ser internado num campo igual aos franceses e espanhóis, mas o medo desfez-se perante a visão daquele local cosmopolita e turístico onde europeus de todas as origens sociais eram bem recebidos . Mais tarde, a partir de 1942, a Ericeira seria utilizada como local de «residência fixa» para refugiados «políticos» ou ilegais.

O mesmo refugiado alemão Tillinger descreveu, em Outubro de 1940, a capital portuguesa como uma cidade «esgotada», onde quase não se ouvia falar português na praça do Rossio e onde os cafés e restaurantes, os hotéis e pensões estavam sobrelotados de refugiados. Também as esplanadas da Avenida da Liberdade estavam cheias de «turistas forçados» que, impedidos de trabalhar, tinham como outras exclusivas actividade tentar prolongar os vistos de trânsito portugueses, arranjar vistos para um país de destino nos consulados inglês ou norte-americano e comprar uma passagem para um navio em filas intermináveis junto às companhias de navegação.

Sousa Mendes castigado, Salazar elogiado
Mas, nessa altura, já Aristides Sousa Mendes tinha caído em desgraça pela sua desobediência às ordens do ditador Salazar. Às acusações de ter passado vistos a pessoas que «pela sua nacionalidade» a eles não tinham direito, defendeu-se com a impossibilidade de estabelecer diferenças entre seres humanos e argumentou que apenas obedecera a razões de humanidade, que «não distinguem nem raças nem nacionalidades». Aristides Sousa Mendes pagou caro a sua desobediência ao ditador português: em 30 de Outubro, foi condenado a um ano de serviço inactivo com metade do vencimento, ao qual se seguiu a exoneração, por «incapacidade profissional para dirigir consulados», com uma reforma de um quarto do ordenado e sem regalias.

Impossibilitado de trabalhar, ficou na miséria e teve de viver da caridade, frequentando nomeadamente, com a sua numerosa família, a cozinha económica da Comassis. A sua mansão de Cabanas de Viriato ficou em ruínas e todos os seus doze filhos acabariam por emigrar, muitos deles para os EUA, com a ajuda das organizações judaicas. Morreu em 1954 e só foi reabilitado postumamente, em 1987. Até então, o facto de ter «desobedecido» ao Estado português tinha sido mais importante que a concessão de cerca de 30.000 vistos a perseguidos pelo nazismo, dos quais perto de 10.000 assim salvaram a vida.

Ironicamente, foi numa ditadura autoritária e nacionalista com simpatias pelo anticomunismo e antiliberalismo do regime nazi alemão, que muitos refugiados encontraram um porto de abrigo provisório. Foi num país atrasado, pobre e isolado que, por algum tempo, estrangeiros com costumes diferentes, comportamentos sociais e opiniões culturais e políticas diversas se relacionaram com os portugueses. O facto de o regime ditatorial português, apesar das semelhanças que apresentou com o nacional-socialismo, se ter diferenciado em aspectos essenciais do alemão, a ausência de anti-semitismo na ideologia salazarista e as circunstâncias da neutralidade portuguesa acabaram por possibilitar a salvação através de Portugal de alguns perseguidos pelo nacional-socialismo. A sua entrada no país foi porém dificultada, a sua presença apenas tolerada enquanto estadia temporária e o exílio definitivo impedido.

A partir de 1938, Portugal tentou impedir a entrada em Portugal de judeus perseguidos pelo nazismo e, em 1940, quase todos os que realmente tinham necessidade de passar pelo país para se salvarem eram impedidos de o fazer. No entanto, como se sabe, muitos refugiados chegaram a Portugal, nomeadamente entre Junho de 1940 e Maio de 1941, período em que, segundo a organização de auxílio judaica, American Joint Distribution Committee, passaram cerca de 40.000 pessoas pelo País , em trânsito para o exílio.

Curiosamente, Portugal ficou nas mentes de todos os refugiados como um porto de abrigo, onde pela primeira vez não se sentiram perseguidos por ser judeus e através do qual se salvaram, com a ajuda de uma população, considerada hospitaleira e sensível aos seus dramas. O agradecimento é por vezes ironicamente estendido aos governantes, nomeadamente a Salazar, o mesmo ditador que castigou implacavelmente Aristides de Sousa Mendes, por desobediência a ordens que a terem sido cumpridas, teriam impedido a salvação de milhares de refugiados. Como lembra Rui Afonso, biógrafo de Aristides de Sousa Mendes, o antigo cônsul em Bordéus assistiu à «suprema injustiça de se ver castigado ao mesmo tempo que o regime político era louvado».

Epílogo
Lembre-se ainda três diferentes episódios ocorridos em 1939/40, que revelam como em Portugal houve atitudes diferentes relativamente aos refugiados. Primeiro episódio. Em 1939, o ministro de Portugal em Berlim, Veiga Simões, propôs a Salazar que, para evitar uma invasão torrencial de emigrantes, o governo português analisasse cada caso individualmente e escolhesse aqueles a quem daria o visto que, segundo ele, deviam ser nomeadamente os portadores de passaporte «J» com «idoneidade moral» e alta categoria científica e técnica . Embora a escolha daqueles a quem se daria o visto tivessem um carácter discriminatório, o certo é que, se esse conselho tivesse sido seguido, mais pessoas se poderiam ter salvo através de Portugal.

Segundo episódio. Entre os refugiados com vistos de Aristides de Sousa Mendes que ficaram em França a partir de 24 de Junho de 1940, quando as autoridades espanholas deixaram de reconhecer os vistos portugueses, contavam-se cerca de 1000 polacos. O embaixador português em Londres, Armindo Monteiro, pediu então a Salazar que os deixasse entrar em Portugal, com o argumento de que se tratava de «gente de raça pura»; o ditador recusou, respondendo que esses refugiados, por não se tratarem de judeus mas provavelmente de «políticos», eram «precisamente» os mais indesejáveis «pelas actividades que quereriam desenvolver em Portugal» . Ou seja, o ditador receava sobretudo, além de uma chegada maciça de estrangeiros, a presença de pessoas diferenciadas com outros valores e ideias políticas que pudessem vir a influenciar os portugueses.

Terceiro episódio. Outra e radical foi evidentemente a atitude de Aristides Sousa Mendes quando resolveu, em Junho de 1940, contra as ordens do ditador e pagando caro pela sua desobediência, conceder vistos a todos os que lhe pedissem, fossem judeus ou políticos, ricos ou pobres, personalidades conhecidas ou humildes anónimos. Aqui não havia escolha prévia daqueles que se salvariam e por isso foi tão radical e prenhe de consequências a opção do cônsul de Portugal em Bordéus.

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