Ricos e pobres.
Foi graças às organizações nacionais
e internacionais de auxílio que a maioria dos refugiados
subsistiram em Portugal. Muitos desses anónimos refugiados,
que não pertenciam àquele pequeno núcleo
de gente famosa acima citado, só traziam a roupa no
corpo depois de terem perdido e vendido os haveres. Em vez
de se instalarem nos hotéis de luxo, de frequentarem
os night clubs ou de gastarem o dinheiro no Casino Estoril,
encheram as pensões e "mataram o tempo de
lazer forçado nos cafés e nas ruas da cidade.
Não admira, no entanto, que, por causa de todas as
dificuldades que se levantaram à sua entrada em Portugal,
só uma escassa minoria de refugiados mais afortunada
tenha conseguido chegar ao país. Um dos critérios
para a PVDE conceder vistos foi o facto de os refugiados possuírem
fortuna e, por isso, não admira que o barão
Alphonse de Rotschild o tenha obtido . Mas, as portas de Portugal
nem sempre se abriram a todos os ricos. Em 12 de Abril de
1940, o cônsul de Portugal em Hamburgo não quis
visar os passaportes de duas irmãs de Edith de Rotschild,
Bella e Flora, a menos que obtivessem o visto de entrada na
Rodésia . Em 1 de Maio, o M.N.E. também recusou
autorizar o visto pedido no consulado em Zurique pelo príncipe
de Ratibor.
Para Suzanne Chantal, os estrangeiros que chegaram a Lisboa
pertenciam a todas as categorias sociais: havia aqueles que
não tinham o aspecto "de quem espera a caridade
de uma sopa e os que "traziam os vestígios
de anos e anos de êxodo. Erika Mann, por seu turno,
descreveu "der Geruch schmutziger Lumpens que tornava
irrespirável o horrível café "internacional
de Lisboa, cheio de refugiados que traziam "dieselbe
Kleidung, in der sie ihr Land verlassen hatten (...) abgetragen
und schmutzig, oft zerissen . Segundo ela, a capital
portuguesa tinha-se transformado numa "internationalen
Treffpunkt cheia de estrangeiros "verbannte
e "heimatlose, "ohne Gepäck, ohne Gold,
oft ohne Ausweispapiere.
Pelo contrário, segundo a opinião de Alexandre
Babo, "as classes mais pobres dificilmente teriam chegado
a Portugal. Por outro lado, os portugueses, deslumbrados "com
os sinais externos dos `refugiados´, do seu ar civilizado
e diferente, consideravam por vezes injustamente aqueles
estrangeiros como "gente privilegiada, pois tinham podido
atravessar terras e fronteiras mantendo o seu ar de classe
dominante . Um jornal português descreveu, em
1941 , os estrangeiros como "senhores rotundos, género
banqueiros ou industriais que, apesar da perca da "distinção
de maneiras ou da "rudeza do mando, usavam
"sapatos largos, ferrados nos saltos, marcando a raça,
personalidade e categoria pelo bater forte e sonoro.
Essa imagem paradigmática dos refugiados, para a qual
terá contribuído a minoria rica de estrangeiros
ilustres e de algumas cabeças coroadas europeias, sintetiza
a que foi transmitida e perdurou ao longo dos anos entre os
portugueses. O próprio regime também veiculou
uma realidade deturpada para justificar a ausência de
assistência directa aos refugiados de "guerra,
como eram tratados num propósito velado de não
atingir o regime alemão que os perseguia pela sua raça.
Num folheto de propaganda sobre assistência social,
em 1945, os refugiados foram retratados como "abastados
que não careciam de assistência económica
que os portugueses tinham porém recebido "com
carinho e desinteresse.
"Homens bons. Cônsules
que ajudaram os refugiados.
Como já se viu, alguns diplomatas de Portugal nos países
ocupados e do Eixo, directamente em contacto com as misérias
e as perseguições a que eram sujeitos os judeus
e todos os perseguidos pelo nacional-socialismo, intercederam
em seu favor, desobedecendo, por vezes, às ordens do
Ministério dos Negócios Estrangeiros e da PVDE.
Uns foram mesmo acusados de corrupção por pretensamente
terem vendido passaportes e vistos. Entre 1933 e 1934, o M.N.E.
teria alegadamente detectado redes de passaportes de nacionalidade
portuguesa concedidos a judeus e apátridas pretensamente
a troco de dinheiro.
Foram então exonerados o cônsul honorário
em Zurique, um suíço, e, apesar da fraqueza
das provas, o cônsul português em Atenas ao mesmo
tempo que foi retirada a nacionalidade aos que assim a teriam,
segundo a PVDE, obtido fraudulentamente . É de realçar
porém que, graças aos vistos passados por este
último cônsul, várias dezenas de judeus
sefarditas com ascendência e passaporte portugueses
da Grécia foram, em 1944, como se viu, salvos das garras
nazis pelo governo português. Por outro lado, mesmo
se houve alguns casos de corrupção, não
foi o dinheiro que motivou a maioria dos cônsules.
As suspeitas relativamente a cônsules honorários
estrangeiros continuariam já depois do início
da guerra. Em 1940, o cônsul em Marselha e a PVDE denunciaram
o vice-cônsul de Toulouse, um francês, por ter
pretensamente recebido ilegalmente dinheiro a troco de vistos
e de ter montado uma rede que angariava "clientes
. Lembre-se porém que, independentemente da veracidade
dessas provas, esse vice-cônsul, que seria exonerado
da sua função em Dezembro, tinha anteriormente
recebido, como se verá, ordens de Aristides Sousa Mendes
para continuar a conceder vistos. Em Agosto de 1942, novos
rumores sobre o fornecimento de passaportes e vistos "falsos
recaíram sobre os consulados em Nantes e Lyon.
No entanto, o certo é que não se pode confundir
putativos casos de fraude a troco de dinheiro com o da maioria
dos diplomatas de Portugal que, por razões humanitárias,
concederam, contra as ordens do governo português, vistos
que salvaram a vida de refugiados. Entre estes, contaram-se,
por exemplo, o cônsul em Bucarest, Germani, acusado
pela PVDE mas defendido pela Legação de Portugal
na Roménia , o cônsul em Milão, Giuseppe
Agenore Magno, exonerado em 13 de Dezembro de 1940, e o cônsul
honorário em Zagreb.
Em 31 de Dezembro de 1941, o cônsul em Marselha, José
Augusto de Magalhães, criticou as restrições
ao "direito de livre trânsito das pessoas
porque, segundo ele, Portugal tinha sido talhado pelos antepassados
como "uma orla da Europa à beira do Atlântico
pela qual podiam sair as vítimas das perseguições
políticas e religiosas. Defendeu, por outro lado,
que seria vantajoso para o país que aí se fixassem
"os honestos e vastos capitais e as comprovadas competências
técnicas que nos procuram e, pela sua parte,
dado que lhe era difícil pronunciar a palavra "não,
solicitou a Salazar "a sua rápida e urgente substituição.
Aristides de Sousa Mendes
Mas o caso mais conhecido foi o de Aristides de Sousa Mendes
, cônsul de Portugal em Bordeaux, cidade aonde chegaram,
a partir de Abril de 1940, milhares de refugiados dinamarqueses,
noruegueses, holandeses, belgas e luxemburgueses, fugidos
à guerra depois da invasão dos seus países
pela Alemanha. Logo em 27 de Maio, o cônsul português
deu vistos a cerca de 17 belgas, já depois de Salazar
ter enviado a circular que impedia aos consulados a concessão
de vistos sem autorização prévia do Ministério
dos Estrangeiros. Entre 14 de Junho, dia em que Paris foi
ocupado e em que Salazar limitou a concessão de vistos
aos que possuíam um visto de destino e transporte pago,
e 17 de Junho, juntaram-se em Bordeaux cerca de 700.000 fugitivos,
entre os quais os governantes franceses, representantes diplomáticos
de 60 países e ex-dirigentes dos países ocupados.
Aristides de Sousa Mendes decidiu então que daria
vistos a todos os que o solicitassem sem praticar discriminações
de carácter religioso, político ou "rácico.
Considerava imoral e anticonstitucional perguntar aos requerentes
de vistos se eram judeus e, além disso, argumentou
que tinha chegado a hora, para os portugueses, de corrigirem
a expulsão de judeus de 1497, ajudando-os, quatrocentos
anos depois, quando voltavam a ser perseguidos. Assim, nos
três dias entre 17 e 19 de Junho, passou gratuitamente
milhares de vistos e ordenou aos cônsules de Toulouse
e de Bayonne para fazer o mesmo. Nesta última cidade,
encontrava-se o ministro português em Bruxelas, Francisco
Calheiros de Meneses, que, tal como os outros cônsules,
também concedeu vistos aos refugiados, embora o negasse
mais tarde.
Salazar enviou então o embaixador em Madrid, Teotónio
Pereira, para resolver a situação na fronteira
franco-espanhola de Irun onde as autoridades espanholas ameaçaram
não reconhecer os vistos portugueses e o avisaram de
que não se queixasse depois "se os alemães
fossem até Portugal atrás dos refugiados
. Teotónio Pereira ordenou o cumprimento das ordens
de Salazar e comunicou às autoridades espanholas a
nulidade dos vistos concedidos pelo consulado em Bordeaux.
Em 24 de Junho, no mesmo dia em que a fronteira portuguesa
foi encerrada e a Espanha deixou de reconhecer os vistos portugueses,
foi também fechado o consulado de Bayonne deixando
assim em França cerca de 4000 pessoas. Entre esse dia
e 8 de Julho, Aristides Sousa Mendes esteve em Hendaye onde
foi visto a assinar vistos na estação de caminhos
de ferros. Entretanto, o director da PVDE, A. Lourenço,
deslocou-se à fronteira portuguesa de Vilar Formoso
para tentar reenviar os refugiados para Espanha mas esta não
consentiu com o argumento de que os vistos deviam ser respeitados.
Mas, nessa altura, já Aristides Sousa Mendes tinha
caído em desgraça pela sua desobediência.
Às acusações de ter passado vistos a
pessoas que "pela sua nacionalidade a eles não
tinham direito, defendeu-se com a impossibilidade de estabelecer
diferenças porque obedecera a razões de humanidade
que "não distinguem nem raças nem nacionalidades.
Aristides Sousa Mendes pagou caro a sua desobediência
ao ditador português. Foi condenado a 1 ano de serviço
inactivo com metade do vencimento, ao qual se seguiu a exoneração,
por "incapacidade profissional para dirigir consulados.
Impossibilitado de trabalhar, ficou na miséria e teve
de viver da caridade, frequentando nomeadamente, com a sua
numerosa família, a cozinha económica da Comassis.
A sua mansão de Cabanas de Viriato ficou em ruínas
e todos os seus doze filhos acabariam por emigrar, muitos
deles para os EUA, com a ajuda das organizações
judaicas. Morreu em 1954 e só foi reabilitado postumamente,
em 1987. Até então, o facto de ter "desobedecido
ao Estado português tinha sido mais importante que a
concessão de cerca de 30.000 vistos a perseguidos pelo
nazismo, dos quais perto de 10.000 assim salvaram a vida.
No mesmo mês da chegada de Eva Lewinski, partia de
Lisboa, no navio "Nea Hellas, Alfred Döblin
que afirmou, sobre a sua estadia na capital portuguesa: "So
selbstverständlich nahm uns Lissabon auf, so prächtig
enttäuschte uns Lissabon . Também ele, ao
admirar a luminosidade paradisíaca da cidade, não
deixou de referir, com ironia, que, na Praça Marquês
de Pombal, a estátua de um tirano iluminista vigiava
uma avenida chamada "Liberdade. Entre as desilusões
sentidas, descreveu o terrível hábito português
de cuspir para o chão: "Lissabon kennt die furchtbares
Art der Spucken. Das anatomische Spucken. (...) Und was bedeutet
dieses Spucken? (...) Wir mussen zu einer Erklärung greifen.
Sie heisst: der Larm. Das Spucken gehört mit dem Larm
zusammen. Weil man nicht immmerfort schreien kann und nicht
jeder über einer Kuhlglocke verfugt, so spuckt man und
zeigt wenigstens so seinen guten Willen.
Além do calor e da luminosidade, o barulho parece
ter sido a principal recordação sensual que
perdurou de Lisboa na memória do autor de «Berlin,
Alexanderplatz» . Nas ruas, as buzinadelas dos automóveis,
os cantos dolentes dos cegos e os pregões dos vendedores
ambulantes misturaram-se com o ruído dos carros eléctricos
onde se amontoavam, descalças e andrajosas, crianças
que, aos gritos, apregoavam jornais:
"Während der Fahrt hüpfen Strassenjungen auf
die Wagen, nacktfüssig, in zerrissenen Jacken und Hosen,
Zeitungsverkäufer. An einem Hügel kann man das originelle
Denkmal eines solchen Jungen sehen. Sie verdienen ein Denkmall
- vielleicht könnte man ihnen eines Tages auch Jacken
und Hosen Kaufen.
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